quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Eu, eu mesmo e Vipassana.

 Dez dias em um retiro de meditação no interior do Rio de Janeiro resumidos em alguns parágrafos.



  Quem já assistiu “Eu, eu mesmo e Irene” vai entender o título do post e a ironia que possui com o resto do texto, mas estragando a piada como um bom tio velho em almoço de domingo, eu explico. Este filme, uma comédia barata que não recomendo, mostra a vida de um homem que trabalha como policial de uma cidadezinha e é o “capacho” de todo mundo. A cidade inteira tira proveito do policial e ele faz tudo sorrindo, mas em um momento do filme ele muda, um tipo de dupla personalidade, e começa a impor um respeito exagerado à todos da cidade. A Irene é o pivô da mudança.
     Foi assim, falaram-me de um curso de meditação de dez dias e foi o máximo pra despertar meu interesse, no entanto o assunto surgiu em uma festa de aniversário com muita bebida e logo, por causa da bebida, eu me esqueci do tal curso. Bem, mas no começo de janeiro deste ano um amigo meu, que também estava na conversa no dia do aniversário, falou-me pela internet que havia encontrado o site do curso. Eu pedi que ele me enviasse o endereço e fui me inscrever. Não haviam vagas, fiquei na lista de espera. Estava chegando o dia do começo do curso e ninguém ligou nem enviou email falando sobre a vaga. Eu imaginei que não conseguiria nada com a tal lista de espera, mas três dias antes do inicio do curso, eles me ligaram. E de repente eu tinha apenas três dias para organizar a minha vida.  Eu iria ficar dez dias longe de tudo, sem telefone, sem internet, sem TV e sem falar.
O curso de meditação, ou retiro de meditação, fica aqui no interior do estado do Rio. Região Serrana que, segundo a placa na entrada da cidade, ostenta 52% de mata atlântica. O caminho foi longo, mas de longe menos doloroso que o caminho que eu iria percorrer durante os dez dias. Cheguei ao “Dhamma Santi” um pouco depois das duas da tarde do dia 26 de janeiro. Começou ali.
Depois de assinar um termo me comprometendo a permanecer os dez dias no retiro e um formulário que perguntava meu histórico de doenças mentais e emocionais, fui encaminhado ao meu quarto. Coisa simples, quatro camas de madeira em um espaço de no máximo sete metros quadrados. Quando eu cheguei um dos meninos que dividiria o quarto comigo já estava lá. Talvez motivado pelo silêncio que teríamos que fazer, trocamos poucas palavras. Tive tempo de tomar banho, colocar as recomendadas “roupas humildes”, dar oi aos rapazes dos dormitórios vizinhos e o sino tocou pela primeira vez. Na verdade não é um sino, mais parece um gongo portátil. O som no primeiro dia é bem agradável, mas isso muda.
A primeira reunião que tivemos foi no refeitório masculino, foram passadas todas as regras e perguntado mais uma vez se agüentaríamos os dez dias. Não entendi na hora o motivo da insistência com o fato de passar dez dias lá, afinal todos sabiam onde estavam se metendo. Entretanto, todos nós concordamos e fomos encaminhados à sala de meditação pela primeira vez. A sala de meditação é um cômodo muito grande, cheio de tapetes no chão e com um altarzinho na frente. Cada tapete tem seu dono e pertence a ele até o fim do curso. O altar, na verdade é um “tabladinho”, onde o professor medita. Depois de todos na sala, a primeira meditação em grupo começou. Eu já sabia que seriamos orientados pelo Sr. S. N. Goenka, maior divulgador e professor de Vipassana da atualidade, mas não sabia que seria tão engraçado. Tivemos uma professora, a Sra. Leila Macedo, mas seu trabalho durante os dez dias foi reproduzir em seu Ipod as gravações com as orientações do Goenka em inglês e vez em quando nos perguntar uma coisa ou outra sobre a técnica. Pois bem, eu disse que a primeira vez foi engraçada, é que a voz do Sr. G. é a voz mais rouca que eu já ouvi na minha vida, supera a do vocalista do Sepultura. E, além disso, o inglês dele é muito carregado pelo sotaque indiano. Consegue imaginar um indiano rouco falando em inglês pra você inspirar e expirar por longos minutos? Foi difícil, mas eu consegui segurar o riso.
O primeiro dia começa realmente no segundo dia em que você está no retiro. O gongo soa às quatro horas da manhã e você tem meia hora para se aprontar para as duas horas de meditação que acontecem antes do café da manhã. Para poupar minha narrativa cansada e dinamizar as coisas, segue o horário seguido severamente nos dez dias:


4:00 – Acordar
4:30 às 6:30 – Meditação em grupo na sala ou no quarto.
6:30 às 8:00 – Café da manhã e descanso.
8:00 às 9:00 – Meditação em grupo na sala.
9:00 às 11:00 – Meditação na sala ou no quarto segundo as orientações do professor.
11:00 às 12:00 – Almoço e descanso.
12:00 às 13:00 – Entrevistas privadas com o professor.
13:00 às 14:30 – Meditação em grupo na sala ou no quarto.
14:30 às 15:30 – Meditação em grupo na sala.
15:30 às 17:00 – Meditação na sala ou no quarto segundo às orientações do professor.
17:00 às 18:00 – Lanche e descanso.
18:00 às 19:00 – Meditação em grupo na sala.
19:00 às 20:15 – Palestra.
20:15 às 21:00 – Meditação em grupo na sala.
21:00 às 21:30 – Perguntas públicas.
21:30 – Apagam-se as luzes.


E assim, seguiram os dez dias. Para cada um desses horários tocava-se o gongo, fica fácil imaginar a raiva que você pega do gongo depois de três dias. No entanto a raiva do gongo é a que menos incomoda, eu não sabia que meu cérebro podia ser tão chato e desobediente. Depois de três dias tentando domá-lo, ele torna-se seu inimigo. Cada passo foi motivo de pensamentos bons e ruins, cada minuto dos momentos de descanso foi intenso, cada segundo sem falar, preso em mim mesmo, foi caótico.
No segundo dia eu estava certo e só uma coisa passava na minha cabeça: “eu preciso sair daqui”. Foi o dia inteiro mastigando meu orgulho por ter confirmado tantas vezes que agüentaria ficar os dez dias e agora estar desistindo. Suportei o segundo dia e na palestra da noite eu escutei tudo que eu havia sentido. Por não poder falar com ninguém, fica a dúvida quanto ao que está se passando com os seus companheiros de retiro, isso intensifica o sofrimento. No entanto, como disse, na palestra do segundo dia Goenka me fala a seguinte frase: “Hoje é um dia difícil, muito provavelmente você pensou em desistir ou fugir daqui.”. Senti um misto de medo e satisfação. Em seguida ele explicou que por estar tentando domar a mente, ela usa certos truques para te fazer fugir desta suposta “roubada”. Faz-te sentir saudade de coisas ridículas, por exemplo. E de fato, o que mais me motivava a sair no segundo dia era a saudade de beber café.
As coisas foram bem até o quarto dia, mas é nesse dia que aprendemos a técnica de Vipassana, lê-se “Vipáchana”. Então, no quinto eu dia estava querendo correr do retiro novamente e como da primeira vez a palestra da noite foi uma surpresa. A gravação rouca me fala exatamente a mesma coisa que disse no segundo dia, porém agora justifica a vontade de desistir pela intensidade e o aprofundamento da técnica. Eu já cansado, mordi o lábio, fiz a última meditação do dia e fui dormir. Nesta noite eu sonhei com duas coisas: que eu escrevia e com o café da manhã. Somos proibidos de praticar qualquer atividade intelectual durante o curso e o café da manhã do retiro é a melhor coisa do mundo. Eu nunca tinha comido torradas integrais tão gostosas na minha vida.
Depois do sétimo dia, dia em que soltei algumas lágrimas enquanto andava pelo retiro, não parei de contar o tempo até o fim do curso. O lugar é maravilhoso, fica situado em cima de um dos morros que compõe a cidade de Miguel Pereira. Não tem nada ao seu redor, só Mata Atlântica. É preciso dizer que tive alguns problemas com a fauna do local. Uma das regras do retiro é não matar nenhum animal, nem os mosquitos insuportáveis que ignoram o repelente e sugam metade do sangue do seu corpo. Todavia, os mosquitos foram nada perto dos sapos imensos que tinham o prazer de nos esperar durante a noite na porta do banheiro. Eu vi uma cobra coral e a sensação não se compara ao pavor que aqueles sapos me provocaram. Tinha um em especial, que quando nos foi permitido falar apelidamos de “Sapo Monstro”, que não saia quando batíamos o pé no chão. O danado era insistente e carregava grandes bolsas de veneno no pescoço, o que deixava sua insistência ainda mais assustadora. Depois disso eu não consigo nem pensar nos sapos fofos de gesso que minha tia tem no jardim. Traumatizei.
Lá pelo nono ou oitavo dia nós já estávamos bem por dentro de como a técnica funcionava. A Vipassana se baseia no preceito de que tudo que sentimos provoca uma reação e que essa reação pode ser de aversão ou cobiça. Daí, se a coisa é boa geramos cobiça, ficamos cegos pela sensação. Se a coisa é ruim, aumentamos a dor pela aversão que criamos na cabeça. Exemplificando, se temos um problema fazemos de nossa vida um inferno deixando o problema poluir o resto das coisas que não estão envolvidas com ele. Ou, se compramos algo e sentimos certo prazer de “eu posso comprar isso e todo mundo vai ver”, passamos a comprar sempre coisas pelo prazer fútil, não pela necessidade. É aí que a Vipassana entra, ela ensina o meditador ficar equânime a essas sensações. Não criar mais aversão ou cobiça. Sintetizei o assunto, o curso dura dez dias e realmente são necessários os dez dias para aprender a técnica.
Finalmente no décimo dia é permitido falar, segundo eles é uma reabilitação antes da saída. Imagino que deve ser realmente terrível ficar dez dias sem falar e depois ser jogado na cidade grande. Pois bem, o dia foi simplesmente para apresentações e “o que você achou do curso?”. Foi divertido, mas em certos momentos dá saudade do silêncio. Falamos um bocado. Conheci todas as pessoas que andaram, comeram e meditaram perto de mim por dez dias. O menino que parecia tímido era realmente tímido, o que parecia nervoso era um doce, o que batia a porta não percebia sua agressividade etc. Foi o dia de jogar ao chão os estereótipos e conhecer pessoas interessantes.
No último dia também ficamos sabendo dos desistentes. No meu quarto um menino desistiu, e de fato quando eu vi a cama dele vazia me deu vontade de sair também. Não seria ser volúvel, é que a facilidade de deixar o retiro fica aparente. Uma ótima oportunidade para o cérebro cogitar as possibilidades.
Quando amanhece o décimo primeiro dia, no nosso caso o dia 06 de fevereiro, você pega suas coisas (carteira, livros, celular etc). Ainda é necessário meditar, então meditamos. Depois da meditação acontece um mutirão de limpeza em todo o lugar, os alunos limpam todas as dependências que usaram. Eu achei muito justo e divertido. No último dia também é possível fazer doações, o curso é todo gratuito e é mantido pela doação dos alunos antigos. A gratuidade do curso é explicada pela necessidade da diminuição do ego de quem participa. Eles falam: “Se você paga pelo curso, acha que tem direito de reclamar. Aqui o ego precisa ficar de fora.”. Portanto, tudo que você usa não é seu, é necessário ser humilde.


Quando cheguei em casa, às 16:13 do domingo, tudo parecia diferente. As coisas não tinham o mesmo gosto. No espelho eu estava mais magro e barbudo. No meu quarto as coisas não me atraiam como antes. Minha voz estava calma e eu conseguia pensar tranqüilo antes de responder qualquer coisa. Olhar para a televisão havia perdido a graça. Eu contei tudo aos meus pais, que ficaram principalmente felizes por eu ter parado de fumar momentaneamente. Eu não acho que o melhor que eu trouxe de lá tenha sido isso, a lista é longa... Eu já compartilhei grande parte da experiência com vocês, caso tenham a oportunidade de passar os dez dias dentro de si mesmos, façam e descubram essa grande lista...

P.S.: O curso termina com a frase: Sejam Felizes. :)


6 comentários:

Paulo Roberto Figueiredo Braccini - Bratz disse...

Super legal querido ... super interessante ... estas oxigenadas na vida são boas, com certeza ...

Agora, para não perder a piada ... eu tb meditei muito ... só q sempre de joelhos ... rs

bjão

;-)

Tainá Rei disse...

Lindíssimo este texto. Como eu disse, quero aprender com você. Sei que verei esta experiência refletida aqui no blog também. Beijos!

Hugo de Oliveira disse...

ótimo texto, gostei.
A minha mãe ficou super feliz quando contei a ela que tinha parado de fumar...Tinha 16 anos quando comecei e parei aos 18 anos.


Ah! fiquei super feliz em saber que você é professor.


abraços
de luz e paz

Lucas disse...

Hugo:

Ainda não me formei, mas serei em breve. :)

E quanto ao cigarro... :(

Walker disse...

Realmente, eu não sabia que era assim agressivo com as portas.

Saudades de todos Lucas.

Sandra disse...

Lucas querido,

beleza de texto e, mais ainda, de experiência. Você parece ser mesmo um garoto especial!

Grande beijo,


Sandra