quarta-feira, 23 de novembro de 2016

10 Dias





1. Eu acordo com o seu barulho. Você insiste em arrumar o armário, acho estranho, te dou “bom dia”.

2. Eu acordo com o seu barulho. Você tá com a mesma roupa de ontem, não dormiu?

3. Eu acordo com o seu barulho. Você arruma o armário. “Quer comer alguma coisa?”, você responde que não com a cabeça e encara as prateleiras.

4. Eu acordo com o seu barulho. “Você precisa dormir um pouco, amanhã arruma esse armário”. Eu acordo com o seu barulho.

5. Eu acordo com o seu barulho. “Por que você tá chorando?”

6. Eu acordo com o seu barulho. “Feliz aniversário!”. Você coça a cabeça e reclama alguma coisa inaudível.

7. Eu acordo com o seu barulho. “Você ainda não comeu esse bolo?”

8. Eu acordo com o seu barulho. Você me encara com o pote do remédio na mão.

9. Eu acordo com o seu barulho. ”O que você tá fazendo? Não faz isso.”

10. Eu acordo.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Céu

São Paulo, 2016. (35mm)
Rafael anunciou-se filho da compaixão. Não com os outros, com ele mesmo. Parou de achar, na maior parte do tempo, que sua vida era o resumo do que ele sempre detestou.

Viver com os fones pendurados no ouvido foi a solução dos problemas, quase todos.

Passou, depois o incidente com as cordas, a usar a varanda para olhar o céu. Encolhido como os vasos de planta. Tão marrom quanto.


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Cordas

São Paulo, 2016. (35mm)


Três cordas passavam na varanda de Rafael. Uma delas servia pra puxar o balde lá de baixo com as coisas que a vizinha gorda cozinhava e insistia em dar a ele. Outra segurava o varal no lugar, mas ele nunca lavava roupas. A terceira Rafael pendurou esta tarde. 

16:45 o alarme do celular ecoou na varanda, Rafael deitado no chão abriu os olhos, não tinha calculado certo, arrebentou onde? Começou a investigar arrastando sua falta de talento para a morte. Não encontrou a razão.

Rafael evitou a rua por alguns dias, o que pensaria a vizinha gorda de baixo se o visse com o pescoço roxo. A falta comida foi o único motivo de alcançar a rua. 

Saiu do prédio olhou para a sua própria varanda pensando a sujeira que faria se o pulo substituísse a corda. Pelo menos teria conseguido.

"Tá muito calor pra esse cachecol Rafael" - Disse o rapaz que vendia cigarros na calçada da frente. "Eu sei" - Foi a reposta seca por trás do cachecol.

No mercado encarou a sessão de queijos por alguns minutos. Voltou para os pães.

E na varanda, agora só duas.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Portas

As portas do armário estão abertas, nada sai.

O vazio sentado ao seu lado aparenta ser maior que você. Estou silêncio.

Você procura na mochila as desculpas que me deve. Acha nada. Sua mochila não é capaz de renunciar por você.

Te tiro os olhos, um mosquito. Sem reparar a fuga, te acho.

Você diz que precisa ir. Onde?

As chaves, onde? Faço aceno com a metade da mão, o vazio te segue. Se vejo o vazio ele também é meu?

Sete passos, apago a luz do quarto olhando as portas abertas.

Amanhã escrevo sobre isso. Amanhã acordo cedo. Amanhã, vou.


domingo, 4 de setembro de 2016

Porta

Deu duas batidas na porta e esperou que alguém abrisse. Respirou fundo, ajeitou a camisa e encarou a porta mais uma vez. Carregava um saco de papel com alças pretas de plástico. Seu olhar era fixo na pequena lente encaixada na madeira à sua frente. Respirava profundamente. Teve medo de todo o ar do corredor ser engolido por suas entranhas, o saco de papel vacilou na sua mão. Deu mais duas batidas e esperou. Sentiu a angústia do não saber. Figurou seu rosto em encenação barata enquanto pensava nas possibilidades da demora. Ouviu passos e um arrepio subiu dos pés à cabeça, ajeitou-se. Ao empurrar os óculos com a ponta do dedo escutou as chaves se agredindo atrás da porta. Concentrou-se para não soar estranho quando falar a primeira frase. Encarou a lente por mais um segundo. “Bom dia”.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

O peso do amargo

É a última quarta-feira do mês. No meu bolso da frente estão algumas notas da máquina de cartões do posto de gasolina, são as provas de que é possível comprar sem ter dinheiro. São as lembranças que meu salário do próximo mês vai chegar e antes de dar "oi" vai fugir. No bolso de trás, um maço de cigarros paraguaios que custaram 2,50. Abro o vidro do carro. É o último dia do mês.

Fazem dois meses me ofereceram um cargo melhor. Fazem dois meses que percebo que o "melhor" é relativo demais.

Abri a janela e acendi um cigarro paraguaio. Já tinha dito que abri a janela, esqueci de dizer o motivo.

No meu carro um músico de meia idade que está em busca do sucesso. Apresento algumas músicas salvas no celular, queria parecer interessante. Ele gosta. Comentou de uma cantora japonesa que a música que mostrei o fez lembrar. Detesto música japonesa. Ele encolhe.

Termino o cigarro e fecho a janela. Lembro que ligar o ar condicionado do carro faz gastar mais gasolina e invento que estou precisando do ar da noite. São 19:15.

Passamos por um acidente de carro que deixou o trânsito lento, ele resolve pegar a gaita na bolsa me fazendo ter que desligar o som do carro. Eu adorava a música que estava tocando.

Ele me mostra que sabe tocar a nona sinfonia na gaita. Admiro. Fico mais animado com o motoboy ao lado tentando escutá-lo tocar do que com a música de fato.

Ele para, eu volto a música. Fazemos um silêncio desconfortável. Um carro de polícia pede passagem.

O desconforto da carona nos faz conversar sobre elogios e críticas. Digo que detesto elogios ao meu trabalho. Que adoro elogios às coisas que não fiz de fato. Explico que meu narcisismo tem limites estranhos. Ele finge entender. Diz que lida bem com as críticas. Concordo sem acreditar.

Outro carro de polícia passa. "Melhor fechar as janelas", ele sugere. Concordo. Lembro do ar condicionado, tarde demais.

Estamos chegando no destino da carona. Digo que na próxima vez ele não precisa se sentir forçado à conversar enquanto dirijo. Ele parece ficar sem graça. Ignoro.

Destravo o carro acendendo outro cigarro paraguaio. Ele se despede. Outro carro de polícia passa.

O "melhor" é relativo demais.